terça-feira, 21 de maio de 2013

Eu, Estático

Hoje foi um dia estranho. Bem, hoje e ontem. Ou ontem e hoje. Sim, soa bem melhor.

Ontem quando fui ajudar um amigo em sua mudança encontrei um papel amassado com instruções do que parecia ser um ritual, e na hora das doze badaladas, embora não haja um desses relógios antigos por perto, eu o realizei como foi claramente dito, ou "instrucionado" no papel anteriormente amassado. Eu não passei ferro ou algo parecido no papel, mas com um jeitinho consegui deixá-lo desamassado. Logo depois eis que me deparo com uma cópia de mim estática. Uma cópia perfeita da minha pessoa, em estática! Aquela mesma que aparece na televisão quando um canal não está disponível.

Eu não mantenho um diário ou costumo escrever textos, tanto que estarei passando este para o amigo que estava de mudança, ele parece ter habilidade na escrita (ou, pelo menos, é o que dizem), para revisá-lo e corrigir o que for necessário. Espero que faça um bom trabalho. Sim, mesmo não tendo o costume de escrever resolvi fazê-lo, para tomar registro deste estranho experimento estático (não-físico, televisivo) em que estou vivendo.

Bem estranho por sinal, minha cópia não fala, apenas imita todas as minhas ações, à uns dois ou três metros de distância de mim. No início considerei como um fato engraçado, divertido, por assim dizer, mas agora está começando a ficar estranho. Digo, brincar de sombra cansa depois de um tempo. Ainda não contei aos meus pais, e procurei me desviar da presença deles para que não saibam disso. Espero conseguir me livrar do meu "eu estático" antes que venham me ver.
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Nossa, isso foi muito estranho! Um pouco perturbador também. Por um momento parecia que eu tinha sumido, como se minhas moléculas fossem simplesmente aniliquiladas, e logo depois estava eu consciente no meu "eu estático"! Ainda estou. Não sei como aconteceu, foi tão repentinamente... Isso me faz lembrar a piada do Papa-Léguas e da Tartaruga. Mas agora não é um momento propício para piadas! Estou estático! Sou um canal de TV que não funciona! E agora? Quando eu conseguir voltar ao normal, voltarei a escrever. Sim, "quando" e não "se". Pessimismo numa hora dessas pra quê?

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Finalmente arranjei um pedaço de papel! Faz dias que nem entravam em contato comigo, pensavam que podia ser contagioso. Felizmente, pelo que sabem até agora, não é. A última vez que escrevi sobre minha atual situação foi um pouco antes dos meus pais me verem assim, estático. E foi na embalagem do sanduíche que eu ia comer, até hoje não o comi. Será que alguém o consumiu ou foi deixado para apodrecer? Perguntas que provavelmente nunca serão sanadas... E o primeiro relato foi escrito em uma folha do meu caderno. Bem, voltamos às origens. Agora estou escrevendo em uma folha pautada novamente. Uma folha de caderno, eu presumo. Espero que eu encontre os outros relatos para que seja compilado e se torne um livro. Uma história fascinante deve render uma boa quantia monetária.

Mas vamos ao que interessa: Meus pais enfim me encontraram tendo um ataque de pânico no quarto designado ao querido filho deles. É, percebendo que não podia voltar ao normal entrei em pânico. Depois do susto inicial, e do desmaio de meu pai (sem piadinhas aqui, por favor), fui levado a um médico todo coberto. Quer dizer, eu estava todo coberto, não o médico. Meus pais deviam estar com vergonha de mim, será que é por causa de meu nariz avantajado ou minhas unhas esquisitas? Era para eu escrever algo engraçado aqui... Bem, valeu a tentativa.

Resumindo, o médico também se aterrorizou com a minha situação e fui mandado para exames. Depois de exaustivos testes, descobriram que eu estava, e continuo estando, formado por células que pareciam humanas, mas com sua membrana plasmática alterada, seja lá o que isso significasse, entre outras coisas. Nada parecido com qualquer coisa já documentada, diziam. Nesse meio tempo fui internado em um ambiente isolado, sem qualquer contato exterior. Eu recebia comida três vezes ao dia e ficava entediado ou dormindo todo o resto. É, não demorou muito para eu superar o medo, eu me sentia normal mesmo.

Algo que merece ser ressaltado é que eu nunca emiti ruídos estáticos, mesmo estando estático. Talvez se o fizesse estaria mais atormentado agora. Um benefício e contando...

Agora estou na companhia de meus pais (junto deles, quero dizer, meus pais não são empresários) escrevendo a minha longa jornada. A Saga do Homem Estático. Não, é um título bem batido esse... Enfim, eu e meus pais estamos esperando a conclusão dos médicos do que se deve ser feito. Já contei sobre o ritual, a casa e tudo mais, espero que isso ajude...

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Novo registro, novo papel. Ou quase. Outra folha pautada. Eu poderia ter escrito no verso da anterior, mas preferi não ver minhas anotações anteriores de trás pra frente enquanto produzia novas. Hã, será que é necessário registrar essas mudanças? Digo, seria interessante de ler? Nossa, agora estou pensando como um verdadeiro escritor. Caso eu não fique famoso pela minha estaticidade, pelo menos serei bem reconhecido no meio literário. Humildade pra quê quando se é estático? A lógica deve ir pras cucuias também...

Continuando o que realmente interessa, depois de uma longa espera, maior que a da espera dos resultados dos cansativos exames citados anteriormente, os cientistas chegaram a um veredito: Não foram encontrados documentos relacionados ao caso, com exceção do papel outrora amassado e meus primeiros relatos (eba!). E que venham as teorias!

Várias teorias foram especuladas, das mais bizarras às mais científicas. A que eu mais gostei, e que parece ser a mais popular é de que o meu "eu estático", que atualmente sou eu mesmo, teria sido invocado pelo ritual realizado no meu quarto. Ele/Eu seria minha versão de outra dimensão e ao se aproximar do meu antigo corpo a sua consciência foi destruída, restando apenas o corpo, o qual foi se aproximando cada vez mais com o seu paralelo, e sendo regido pela química da consciência sobrevivente, até se fundir. Quem diria? Com base nesta teoria, eles esperam encontrar algum indício de atividade eletrostática anormal provinda de meus recintos. Dã, por que eles não fizeram isso antes?!

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Não posso dizer que estou surpreso, ou feliz, mas um pouco animado, certamente, com os resultados que as atividades eletrostáticas anormais encontradas no meu antigo cômodo puderam realizar. Estamos chegando a algum lugar. Os maiores cientistas do mundo foram convocados para tentar encontrar a dimensão de que meu "eu estático" veio. Hum, será que já estou famoso? Nisso fico pensando se os meus/dele pais estão sentindo sua falta e se os cientistas pretendem me mandar para substituí-los. Não é uma ideia muito reconfortante, devo dizer.

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Demorou alguns dias, já que nesse meio tempo pensei em parar de escrever e não publicar mais nada, mas fui me avisado que meus temores estavam certos. Serei enviado para a outra dimensão com uma máquina a ser construída. Essa informação me foi dada há quantos meses mesmo? Aliás, nem lembro qual foi a última vez em que vi minha pele como a dos outros, lisa, sem rabiscos. E esse foi um dos motivos que fizeram meus temores se tornarem uma esperança. Uma esperança de voltar a me sentir normal. Só espero que a outra dimensão não destoe muito desta.

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Meu último relato, escrito em uma folha de ofício A4, se é que alguém se interessa em saber disso. Parece que acabaram as folhas de papel pautado, ou simplesmente não quiseram mais dá-las pra mim. Vai saber... O importante é que a construção da máquina em me referi há alguns meses foi finalizada há pouco tempo. E em dentro desse mesmo parâmetro, poderei voltar a viver em ambiente aberto, com meus familiares rabiscados. Estarei em outra dimensão ou em uma televisão danificada? Só espero que seus costumes não se diferenciem muito dos meus. Uma possível alegria pra mim é acompanhada com certa tristeza para meus pais e outros familiares. Nunca mais os verei. Ou não. A outra dimensão pode construir uma máquina dessas também, não? Bem, isso só o tempo dirá.

E com este último parágrafo termino de contar a minha saga neste mundo. Falando nisso, será que me contabilizarão na coluna de óbitos? Espero saber futuramente. Agradeço a todos pela maravilhosa vida que tive até então, não os esquecerei! Principalmente ao meu corretor, que deverá ter um trabalhão, Ha, Ha!

Se eu voltar, narrarei minhas desventuras que por lá vivi também. Até mais e obrigado por tudo!

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