terça-feira, 1 de junho de 2021

A História do Saci

Pouco depois da escravidão ser abolida no Brasil, dois ex-escravos tiveram um filho chamado Isac. Ele não era muito comportado quando criança e seu passatempo favorito era aborrecer os idosos. Os pais sempre lhe repreendiam, dando-lhe enérgicas surras, mas, como violência não cura nada, Isac continuava a exercer a sua sádica ocupação. Até que um dia, o garoto resolveu chutar a canela de um velhinho simpático. Quando ele botava uma coisa na cabeça, não havia quem a lhe tirasse.

Isac esperou pacientemente e, na primeira oportunidade, deu um chutão na perna de um pobre e gentil velho. Este ficou tão irritado e com raiva por causa da dor que rogou uma praga no moleque: quando Isac tivesse filhos, eles seriam mais endiabrados que ele e todos nasceriam aleijados. Isac não se importou.

Ao passar dos anos, Isac foi crescendo e tornou-se mais comportado. Um cidadão decente, até. Seus pais conseguiram domá-lo. Adulto, Isac conheceu uma bela dama de nome Ayla. Namorando-a, ele descobriu que ela era uma bruxa que mexia com magia branca. Ayla era uma bruxa muito boazinha, utilizando seus poderes apenas para curar quem precisava. Pouco tempo depois, Isac a pediu em casamento. Ayla aceitou com prazer. Nove meses depois de casados, ela deu a luz a sete meninos. Seis com a pele escura do pai. Apenas um nasceu com a pele alva da mãe.

Os sétuplos, infelizmente, nasceram todos com uma única perna cada. Ayla, preocupada com que isso dificultasse a vida de seus rebentos, criou um feitiço de agilidade para que, mesmo pernetas, todos os seus filhos andassem como se tivessem duas pernas. O feitiço deu certo, mas teve como consequência uma agilidade sobre-humana nas sete crianças.

Isac e Ayla deram os seguintes nomes aos seus filhos: Sérgio, Pedro, Francisco, Lucas, Benedito, Saulo e Saci. Este último, uma óbvia homenagem ao pai.

Os setes irmãos cresceram, excetuando Benedito, com a má personalidade do pai quando criança. Isac sentiu na pele tudo o que os avós dos sétuplos haviam sentido, multiplicado por seis.

Benedito sempre tentava ajudar o pai a levar seus irmãos para o bom caminho, mas os danados eram muito teimosos. Sem falar o quanto eram céleres! Fugiam de tudo e todos sem a menor dificuldade e só Benedito conseguia alcançá-los.

Um dia, escondidos de Ayla e Isac, resolveram fazer um piquenique em um bambuzal perto da roça dos pais, em plena noite de lua cheia. Benedito foi contrariado, ele se opôs à ideia e tentou convencer seus irmãos de desistirem desse absurdo, relembrando-os que os vizinhos comentavam já havia algumas semanas que onças andavam por aquele bambuzal. Boatos diziam que cinco crianças já haviam sido mortas pelos felinos.

- Mas nós somos sete, que onça consegue sequer machucar um de nós? - zombou Pedro, o palmito, como apelidaram seus irmãos, por causa de sua pele.

Debaixo do luar, entre o bambuzal, os seis empanturraram-se com goiabas, laranjas, tangerinas, maçãs, jabuticabas e tantas outras frutas que haviam levado do pomar de Isac e Ayla. Só Benedito comia com moderação, muito aflito com aquela situação. Quando estavam tão cheios que quase não dava para andarem, Benedito ouvir uma farfalhar nas folhas que jaziam no chão próximo do bambuzal. Não mais que repentinamente, apareceram cinco onças ali. Todos se apavoraram, mas não conseguiam correr. Todos menos Benedito, que saiu de lá em um pé e só não voltou no outro porque não o tinha.

Voltou com seus pais em pânico, mas a tragédia já estava posta diante dos três. Sérgio, Pedro, Francisco, Lucas e Saulo jaziam mortalmente feridos com quatro onças comendo suas carcaças, enquanto Saci ainda lutava com a quinta. Isac e Ayla correram para espantar as onças. No caso, Ayla correu para isso. Isac, com sangue nos olhos, só queria vingar seus filhos.

Todavia, Benedito, mais ágil que os pais, chegou na frente para socorrer o irmão que ainda lutava contra a onça. Benedito conseguiu salvar Saci, mas as outras quatro onças, assim que avistaram Benedito e seus pais, correram para cima dos três. Em uma briga sangrenta, Isac conseguiu matar uma onça e Ayla espantar o resto delas, mas não antes que as malditas fizessem mais uma vítima.

Saci, Ayla e Isac nunca mais foram os mesmos. Saci, no enterro de seus irmãos, jurou nunca mais desobedecer os pais nem fazer qualquer malcriação que fosse. Prometeu ser bonzinho que nem a mãe e prestativo com todos. Isac entrou em depressão profunda e parou de trabalhar na roça. Ayla ensinou sua magia a Saci e, juntos, cuidavam do pai e da lavoura.

Passaram-se os anos e Isac morreu. Os médicos disseram que o corpo não aguentava mais suportar uma mente tão doente. Ayla também morreu, mas de velhice, e feliz por Saci ter cumprido sua promessa.

Arte de Netsubou
Embora já tenha se passado décadas, Saci ainda vive, utilizando a magia ensinada por sua mãe para se manter jovem e poder ajudar o máximo de pessoas possível. Depois de começar a ouvir rumores envolvendo seu nome, da época em que seus irmãos estavam vivos e ele aprontava todas, decidiu mudar de nome para não chamar atenção, até porque ele era o único com o nome de Saci... até onde ele sabia.

Então, se tu encontrares um jovem negro de uma perna só e ele te ajudar, lamentando a morte de seus irmãos que ele não pôde salvar, podes ter a certeza que é o Saci, o bruxo do bem que caminha pela eternidade, tentando se redimir por seus pecados que nunca serão perdoados. Pelo menos, não por ele.